quinta-feira, maio 01, 2008

À BEIRA DO "FOSSO".

À BEIRA DO “FOSSO”
Artigo disponibilizado pelo Monitor Mercantil Digital em 29/04/2008 e publicado no Monitor Mercantil de 30/04/2008, pág. 2 (Opinião).
.
EDUARDO ITALO PESCE (*)
IBERÊ MARIANO DA SILVA (**)
.
No início de fevereiro deste ano, ocorreu a crise internacional gerada pela incursão de forças militares da Colômbia em território equatoriano, a fim de eliminar lideranças das Forças Armadas Colombianas (FARC). Em março, a imprensa divulgou a existência de um incipiente movimento de guerrilhas em Rondônia.
.
Na primeira quinzena de abril, o Comandante Militar da Amazônia demonstrou sérias preocupações, com relação à demarcação contínua de reservas indígenas numa área de fronteira em Roraima. A vitória da oposição nas eleições presidenciais paraguaias do dia 20 de abril pode criar mais um problema para o Brasil.
.
Na fronteira noroeste do Brasil não há propriamente “ameaça de guerra”, pois a guerra naquela região já começou há muito tempo. É um conflito de quarta geração, que já dura há quatro décadas e envolve não apenas Estados organizados, mas também atores não-estatais.
.
É preciso evitar que a situação se agrave, ou que evolua para um conflito interestatal do tipo westfaliano – pois isso poderia resultar no colapso de um ou mais Estados envolvidos, com conseqüências gravíssimas para a manutenção da paz e da estabilidade regionais. O risco de uma intervenção militar por potências externas na Amazônia tampouco pode ser descartado.
.
Felizmente, a crise entre Colômbia e Equador esgotou-se em poucos dias e não teve maiores desdobramentos. A Organização dos Estados Americanos (OEA) reafirmou o princípio da inviolabilidade do território de um Estado soberano, e a Colômbia recebeu uma advertência por seu procedimento. Contudo, os governos populistas da região não foram censurados por apoiarem tacitamente a guerrilha.
.
Ainda bem que, na ocasião, o governo colombiano não lançou mão das teses de “soberania relativa” e “dever de ingerência” (utilizadas pelos Estados Unidos para justificar intervenções militares em outros países) em defesa de sua ação unilateral.
.
É bom lembrar que Equador, Colômbia e Venezuela situam-se dentro da área de instabilidade do “novo mapa do Pentágono”, que se estende do noroeste da América do Sul à África, ao Oriente Médio, à Ásia Meridional e ao Sudeste Asiático, expressando a visão geopolítica da superpotência hegemônica.
.
Este mapa divide o mundo em um “núcleo funcional” (functioning core), integrado pelos países onde existem uma economia de mercado e uma democracia representativa em condições razoáveis de funcionamento, e um “hiato não-integrado” (non-integrated gap), constituído pelos países onde supostamente inexistem tais condições.
.
O entorno estratégico do Brasil – que inclui a América do Sul, o Atlântico Sul, a África Ocidental e Meridional, a Antártica e os países de língua portuguesa – está quase todo localizado dentro dessa área conturbada (também conhecida como “fosso”), onde diversos países podem vir a se transformar em Estados fracassados (failed states) ou fora-da-lei (rogue states).
.
Durante o Século XX, o Brasil esteve normalmente distante dos principais focos de tensão do mundo. Este distanciamento foi um dos fatores que motivaram a atitude de descaso da elite dirigente e dos “formadores de opinião”, em nosso país, com relação à defesa nacional.
.
Recentemente, ressurgiu certo interesse pelos assuntos de defesa, motivado pela percepção do enfraquecimento do poder relativo do Brasil na América do Sul – resultante do processo de “sucateamento” imposto às suas Forças Armadas nas últimas duas décadas. Contudo, é cedo para afirmar que se trata de uma reversão de atitude, e não de mero susto momentâneo.
.
No Século XXI, o envolvimento num conflito interestatal poderá resultar – mesmo em caso de sucesso militar – no colapso de um Estado soberano. Portanto, um pressuposto básico de nossa política de defesa deve ser a necessidade de evitar tais conflitos – ou procurar mantê-los longe do território nacional.
.
Impedir o surgimento de “Estados fracassados” no seu entorno estratégico deve ser prioridade para o Brasil. Em missões de paz no exterior, o papel das Forças Armadas é criar o ambiente de segurança indispensável ao funcionamento de um governo organizado, sem ferir a soberania e a autodeterminação do país conflagrado.
.
Apesar disso, as Forças Armadas brasileiras não podem abrir mão da capacidade de “resposta simétrica” em situações de guerra convencional. A fim de dissuadir ameaças ou defender a soberania e os interesses nacionais, devem ampliar sua capacidade de realizar operações de tipo expedicionário.
.
É preciso resistir às pressões no sentido de transformar nossas Forças Armadas (em especial o Exército) numa “tropa de elite” para combater o terrorismo e o narcotráfico – fruto de uma percepção distorcida das supostas semelhanças entre operações militares em área urbana (como as realizadas no Haiti) e operações policiais.
.
Cabe às Forças Armadas regulares – no contexto específico dos conflitos assimétricos – atuar como força dominante, contra inimigos externos que utilizem táticas de guerra de quarta geração (G4G) – ou empregar essas mesmas táticas, para resistir à ocupação militar por um inimigo poderoso e tecnologicamente superior.
.
O combate ao terrorismo e a outras formas de delito transnacional, por sua vez, cabe aos serviços de inteligência e às forças de segurança pública. Tal divisão de atribuições precisa ser respeitada – a fim de evitar um comprometimento das instituições que ponha em risco a sobrevivência do Estado.
.
*****
.
(*) Especialista em Relações Internacionais, professor no Centro de Produção da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEPUERJ) e colaborador permanente do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Escola de Guerra Naval (CEPE/EGN).
.
(**) General-de-brigada engenheiro militar na reserva, pós-graduado pelo Instituto Militar de Engenharia (IME) e pela École Nationale Supérieure de l’Aéronautique et l’Espace (França) e diplomado pelo Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx).

Nenhum comentário:

Postar um comentário